17 de abril de 2012

Minha querida Traviata.

Nivaldo Santiago

Naquela madrugada/manhã de outono quase inverno em uma cidade do centro/norte da Itália, de origem medieval eu despertava, como acontecia há cerca de dois meses, às cinco horas. Era a norma daquele mosteiro/convento do século XIII que, ocupando após a vassourada napoleônica apenas uma parte do quarteirão, mantinha ainda suas celas amplas, de paredes e portas espessas, frias, antigas, místicas, gregorianas!

Mas, e agora o que interessa, naquela manhã foi diferente: antes de ouvir as lindas longas sonolentas melopéias matinalmente murmuradas pelos moradores daquela fortaleza espiritual, eu despertava ouvindo como que saindo de um sonho, uma voz masculina cantarolando soltamente, despreocupadamente a ária tão ensolarada e mediterraneamente italiana: “Di Provenza Il mar, Il suol/ chi dal cor ti cancellò?”

Corri felizmente assustado, abri a pesada porta da minha cela e vi descendo as seculares graníticas escadas o cozinheiro do convento: um “paesano” alto, coxo, baritonão, recordando as emoções da noite de ópera recém terminada que ele, cozinheiro (...) daquele mosteiro empobrecido naquela adorável Itália ainda se refazendo da louca tragédia nazi-fascista, emoções que ele (cozinheiro) tinha vivido no teatro de ópera local! (Ontem, como em todos esses dias passados, presenciei, vi e senti a tragédia de professores universitários em Manaus deste Brasil globalizado, angustiados por não poderem comprar bilhetes para ao menos uma récita de nossa primeira temporada de ópera; que diremos de nossas cozinheiras...)

La Traviata: deixando de lado as asperezas dramáticas das anteriores Rigoletto e Il Trovatore, Verdi se debruça agora sobre a historinha graciosa e humana da “Dama das Camélias” de Dumas Filho, transformada em libreto de ópera pelo célebre Piave, agora com o nome da La Traviata.

Verdi tinha bem consciência do que se propunha e conseguiu expressar com uma música viva, limpa e escorreita, a graça, o sentimento tão humano de Violeta a frágil amada (todas elas frágeis embora tentem demonstrar força). E aí vai uma grande contradição: toda aquela fraqueza de mulher que vê sua carreira de amante interceptada, encontra justamente nisso, forças internas para continuar amando; e amou tão fortemente que morreu, de amor.

Verdi dá início à sua Traviata com um surpreendente, delicadíssimo e intimista Prelúdio, com um primeiro acorde menor que passando por algumas transições harmônicas expressam já, o drama; e desemboca numa frase maravilhosa em mi maior um dos temas importantes da obra. O mesmo tema do Prelúdio reaparece depois no início do terceiro ato.

O cozinheiro que cantarolava aquela ária de Germont, o durão pai do débil Alfredo, (ai Germont, ai Alfredo, porque vocês deixaram que o pior acontecesse?), estava apenas expressando a imensa popularidade da mais popular ópera de Verdi.

Nesta obra ele consegue tratar nossos sentimentos mais rasteira e universalmente humanos: mas o faz com uma dignidade, uma concisão e um fazer musical inigualáveis.

Verdi era o mestre por excelência da expressão dramática, talvez só emparelhado por Mozart. Música rápida, “snella e svelta” como dizem os italianos, transparente como o céu da Itália e da Provença. O encanto desta música e desta ópera me parece estar no fato de que ela não engana ninguém, isto é; não apresenta estruturas sonoras grandiloqüentes para retratar coisas simples; aí o nó da questão que tantos compositores importantes não lograram desatar. E portanto mais um choque: uma música tão simples – só na aparência pois em nenhum momento é banal, longe disso – desenha e emoldura o trágico - também só na aparência – sentido da vida e a simplicidade da morte! Mas a arte é assim mesmo. Contradições, diferenças, quase irrealidades, como esta cantada pela divina Violeta essa tão querida Traviata: “Oh gioia ch´io non conobbi/ esser amata amando”.

(Amazonas em Tempo, Manaus-AM, 1997)